Você ainda lê jornais?


No início de minha carreira, tive a oportunidade de trabalhar em dois jornais, ambos em Porto Alegre. No pequenino Já Bom Fim, de bairro, obra do lendário jornalista Elmar Bones, da velha guarda jornalística, repórter de mão cheia e no grande Zero Hora, do grande grupo RBS. Todo jornalista, diz-se, deveria cobrir o buraco da esquina, que sempre é mais importante do que o terremoto do outro lado d0 mundo. Afinal, afeta você diretamente. Pois, no Já Bom Fim, pude fazer isso à exaustão. Aos 18 anos, de bloco e caneta na mão, me sentia o arauto do mundo em movimento. Cobria (em uma coluna!) desde o grave atentado a um centro israelita em Buenos Aires (afinal, o Bairro Bom Fim é reduto de judeus) até a incrível história do fechamento do comércio na Osvaldo Aranha, a principal avenida do comércio do bairro.

Naquele micro, eu começava a entender o macro do mundo. Experiências memoráveis vêm de lá. Foi lá que recebi meu primeiro pagamento, 33 reais. Ainda consigo lembrar da editora do jornal, Lílian, à época, tentando me motivar com a fortuna que estava me pagando: “seu primeiro soldo é o mesmo valor que a idade de Cristo quando morreu, 33 anos”, dizia ela. A vida de Cristo não sustentou um final de semana na praia, mas valeu por toda a vida. Lembro também de negociar arduamente o acordar da siesta pós faculdade e almoço com o expediente do jornal. Afinal, caramba, não acontecia tanta coisa assim num bairro de alguns quarteirões.

Alguns 20 jornais depois (era quinzenal), pedi as contas e fui para a Califórnia trabalhar no parque temático Sea World. Enquanto dispensava um caminhão de água para lavar com uma mangueira o estádio dos golfinhos, emporcalhado de sacos de pipocas e cachorros-quentes dos turistas e americanos (principalmente) inutilizados pela festa dos golfinhos amestrados, pensava com doce ternura no bater de pernas atrás das notícias pelo Bom Fim. Definitivamente, eu queria um trabalho para pensar. Essa coisa de ficar contando as horas no relógio não era para mim.

De volta ao Brasil, comecei minha carreira nas revistas, abruptamente interrompida por um corte de custos. Frilas fixos da Veja foram para a rua. E lá voltei para um jornal, o Zero Hora, por obra do glorioso Altair, meu primeiro chefe-amigo, entre os vários que eu teria dali para frente. Fiquei ali por três meteóricos meses antes de receber novo convite para a Veja, mas o suficiente para chegar à conclusão que conhecia um jornal.

A toada alucinante de apurar, escrever e publicar notícias diárias me deu um ritmo de trabalho que valeu por toda a vida. Nada é mais rápido, atuante, explicativo e adrenalizante do que uma redação de um jornal diário. O zum-zum-zum das pessoas conversando energicamente, do telefone tocando (e não mais das máquinas de datilografar espocando) e do negociar entre editores e repórteres para ‘baixar’ as páginas e assim mandá-las para o papel na gráfica. Há um poder velado (o quarto poder) de escolher qual abordagem aplicar, quem destacar, que notícia publicar, coisas que conferem ao jornalismo essa aura glamurosa. Com a força da informação, os jornais podem mudar o mundo no dia seguinte, como fez o Washington Post e com o famoso caso Watergate, imortalizado nas páginas do jornal e no filme Todos os Homens do Presidente.

Revistas semanais são jornais com tempo diferido e revistas mensais são jornais com tempo a perder de vista. Se não têm a velocidade, o furor e a adrenalina do ‘furo’ do jornal diário, as revistas têm espaço para a análise aprofundada, o tempo para pensar e querer entender e explicar o mundo. Por isso e talvez por uma falta de oportunidade, não voltei para os jornais. E penso hoje se algum dia terei a possibilidade de fazer isso… porque parece que os jornais estão acabando.

Quando a internet ganhou corpo, começou a ser questionado o fim dos jornais. Mas logo o argumento perdeu força. Afinal, a televisão não acabou com o rádio e o vídeo não acabou com o cinema. Mas, ao ver a ampla discussão em torno do modelo de negócios dos jornais, a queda nos leitores, a dificuldade em cobrar por conteúdo na internet, acho que estamos perto do final de uma era.

A matéria “Inferno na Torre do Times”, na Veja dessa semana, sobre as dificuldades do jornal NY Times é muito precisa sobre o momento. Compartilho aqui um parágrafo:

O fechamento de um jornal é o fim de um negócio como outro qualquer. Mas, quando o jornal é o símbolo e um dos últimos redutos do bom jornalismo, não importa quanto isso custe, como é o caso do Times, morrem mais coisas com ele. Morrem uma cultura e uma visão generosa do mundo. Morre um estilo de vida romântico, aventureiro, despojado e corajoso que, como em nenhum outro ramo de negócios, une funcionários, consumidores e acionistas em um objetivo comum e maior do que os interesses particulares de cada um deles. Desde que os romanos passaram a pregar em locais públicos sua Acta Diurna, o manuscrito no qual informavam sobre disputas de gladiadores, nascimentos ou execuções, os jornais começaram a entrar na veia das socieades civilizadas. Mas, para chegar no auge, a humanidade precisou fazer uma descoberta até hoje insubstituível (o papel), duas invenções geniais (a escrita e a impressão) e uma vasta mudança social (a alfabetização). Por isso, um jornal, ainda que seja um negócio, não é como vender colírio ou fabricar escadas rolantes (….). Nos EUA, a agonia dos jornais tem impacto especial pelo papel histórico que tiveram na construção da democracia e na introdução de uma relíquia constitucional – a garantia da liberdade de expressão, que ocupa lugar vital nos valores americanos. O dramático é que muitos leitores não parecem incomodados com a ameaça sobre os jornais. Uma pesquisa mostra que 42% dos americanos sentiriam “pouco” ou “nada” se o seu jornal fechasse.

Essa estatística é perfeitamente compreensível para mim: vejo pelo meu círculo de relacionamento. Posso contar nos dedos as pessoas com quem trabalho que lêem jornal regularmente. Quando chego com o Estadão embaixo do braço no trabalho, as pessoas pegam o jornal e o folheiam como se fosse uma novidade. O caso mais sintomático que tenho é o da minha esposa, Juliana, jornalista. Em casa, muitas vezes ela se agacha e pega o jornal que larguei no chão depois de lido. Lê toda a capa do jornal do jeito que estava, agachada. Bate o olho e NÃO abre para ver o que há dentro. E mesmo assim, está sempre informada. Tanto que fico surpreso quanto comentamos sobre algo que para mim só poderia saber quem leu jornal. Ledo engano. Está tudo na internet.

Meu avô foi dono de jornal. Meu pai, diretor de jornal e ex-dono por opção. Eu fui repórter de jornal. Enfim, três gerações diretamente ligadas à tinta e ao inconfundível papel-jornal. Provavelmente, Augusto e Vicente serão leitores de internet e não de jornais como conhecemos hoje. É um privilégio – muitas vezes assustador – fazer parte dessa incrível transformação do mundo.

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