Baleia orca no habitat natural
Aos 20 anos, mudei temporariamente para a Califórnia para participar de um programa universitário que oferecia cursos de verão. Entre as várias opções de trabalho e cidades, eu estava obcecado para trabalhar no SeaWorld, em San Diego. Não porque eu me interessasse muito pelas atividades do parque, mas sim porque San Diego é um dos grandes lugares para se surfar na Califórnia. A ideia era juntar o útil ao agradável: aprender e inglês, viver um tempo fora e… surfar. Tanto insisti com os organizadores do programa que acabou dando certo.
Meu trabalho no parque foi uma lição de humildade. Além de recepcionar os turistas, passando informações sobre os shows – que foi como aprendi inglês -, as tarefas previam dias limpando banheiros, recolhendo lixo e varrendo o chão. O único jeito de se tornar chefe ou gerente no SeaWorld era fazendo essas tarefas. Era preciso conhecer bem o parque. Ninguém era melhor do que ninguém e mesmo os funcionários mais graduados sempre se abaixavam para recolher pequenos pedaços de papel jogados ao chão por turistas do mundo inteiro. Graças à forte cultura de servir, o parque estava sempre impecavelmente limpo. E até hoje mantenho essa mania de recolher papéis jogados ao chão em ambientes limpos.
Uma das minhas tarefas prediletas era limpar o estádio onde os golfinhos faziam seus vários shows diários. Durante a noite, com o parque já fechado, eu jogava litros de água fora para dar conta da sujeira acumulada pelos turistas (nada sustentável!). Sacos de pipoca, embalagens de cachorro quente, bichos de pelúcia, pequenos objetos (e até dinheiro) eram lentamente empurrados, fileira por fileira de assentos até chegaram ao nível de baixo, onde eram escoados para o ralo. Esse era o momento da tarefa que me dava verdadeiro prazer, por uma singela razão: a companhia dos golfinhos.
O tanque onde ficavam tinha cerca de 40 metros de extensão. Enquanto eu passava de um lado para outro, os golfinhos me acompanhavam. Separados pelo vidro, eu tinha certeza que eles me olhavam. Provavelmente queriam dizer alguma coisa, mas infelizmente eu não teria como entendê-los. Essa era tarefa exclusiva dos treinadores. As ordens eram expressas de não interagir com os animais. A justificativa era de que os movimentos e interações poderiam ‘destreinar’ os animais. A punição para desobedecer o protocolo era cristalina: demissão.
Depois de muito hesitar, finalmente um dia, quase ao final do período de 12 semanas do estágio, resolvi interagir com os golfinhos. Primeiro, um tanto hesitante, cheguei próximo ao vidro. Fiquei parado ali, olhando um dos golfinhos, o mais frequente nas rondas noturnas ao meu lado. O olhar dele era um tanto caído, se é que vocês me entendem, com uma expressão de pura simpatia. Ficamos nos olhando fixamentem por uns 20 segundos, mais do que normalmente nós humanos conseguimos nos encarar. Ao final desse tempo, ele soltou o esguicho característico dos cetáceos. Jamais saberia dizer se ele quis dizer algo com aquilo. Provavelmente, não, pois o esguicho faz parte da respiração desses animais, que precisam fazer a troca gasosa (ar ‘respirado’, por ar novo). De qualquer maneira, resolvi seguir adiante com o diálogo sem palavras que iniciamos ali.
Peguei a mangueira que estava segurando e coloquei para cima para simular um chafariz. Os treinadores costumavam dar gelos para eles, que adoravam. Talvez gostassem de água doce. O bicho gostou. Ele virou seu longo bico para cima e tentou sorver a água que caia desordenadamente sobre sua cabeça. Ficou ali por uns bons instantes. Fiquei tirando e colocando a água alguns minutos. E ele continuava ali. Então, fiz o que de jeito nenhum poderia fazer: acariciei o golfinho. Coloquei minha mão sobre o seu dorso, gelado, escorregadio. Lembrava uma borracha molhada. Ou o costado de um cachorro forte como um pitbull. Passei rapidamente a mão sobre ele algumas vezes. Passava e olhava para o lado. Passava e olhava para o lado. Sempre com receio de algum supervisor aparecer por ali e transformar um momento de êxtase em uma ida mais rápida para casa, a milhares de quilômetros dali.
Tudo não durou mais do que cinco minutos. 300 segundos que ficaram vívidos na minha memória.
Lembrei imediatamente daqueles dias quentes e agradáveis na semana passada, com a notícia da morte da treinadora na boca da Orca, genericamente chamada de Shamu. Lembrei também dos turistas, principalmente os japoneses, perguntando: “Where is Samu”, com a pronúncia típica que subtraía o ‘h’.
Naquele dia, naqueles 300 segundos, aquele golfinho fez algo que não fazia parte do dia-a-dia dele. Assim como não fazia parte da minha rotina. Eu tinha um incômodo latente de trabalhar naquele parque. Aos 20 anos, não conseguia identificar o que era. Há mais ou menos dois anos, li um texto do mestre Ricardo Guimarães, com quem tive a chance de aprender muitas coisas legais. Era na revista Trip e falava da falta de lógica de um zoológico (infelizmente, não consegui achar a matéria no site da Trip). Dos bichos tristes, trancafiados, privados do maior bem que alguém pode ter: a liberdade. Há meses que a família planeja uma ida ao zoológico para conhecer o animais. Há meses que fujo da ideia, como provavelmente a baleia Tillikum queria fugir daquele tanque, ideia macabra, de tão inviável.
25/02/2010 – 09h02
Peta alerta SeaWorld após morte de treinadora em ataque de orca
da Folha Online
O grupo de proteção aos animais Peta (sigla em inglês para Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais) disse nesta quarta-feira que a morte da treinadora Dawn Brancheau, 40, pela orca Tillikum, no parque americano SeaWorld foi “uma tragédia que não precisava acontecer”.
SeaWorld cancela shows com orcas após ataque
Orca já havia afogado outro treinador, diz jornal
“Por anos, Peta pede ao SeaWorld que pare de confinar mamíferos oceânicos em uma área que para eles é como o tamanho de uma banheira”, disse o grupo, em comunicado.
“Não é surpreendente quando estes enormes e inteligentes animais atacam”, completa o texto.
O ataque aconteceu na tarde desta quarta-feira, pouco após as três sessões de uma atração chamada ‘Dine with Shamu’ (Jantando com a Shamu) que consiste em realizar truques perto de um local no qual o público pode comer.
Segundo o jornal “Orlando Sentinel”, um diretor do SeaWorld, Chuck Tompkins, já confirmou a versão de algumas testemunhas de que Brancheau foi mordida por Tilikum, a maior orca do parque, e arrastada para dentro do tanque. “Estamos em fase de investigar todas as pessoas e os animais”, disse Tompkins.
Um turista brasileiro identificado como João Lúcio de Costa Sobrinho, 28, contou ao mesmo jornal que tirava fotos do interior do tanque ao lado da namorada, Talita Oliveira, 20, quando percebeu que uma das orcas levava uma pessoa na boca. “Foi terrível. Foi difícil ver a cena”, disse o brasileiro. Conforme o casal, no momento do ataque, Brancheau estava sangrando na área do rosto, e a orca a girava enquanto nadava.
Os brasileiros e outras testemunhas, ainda conforme o “Orlando Sentinel”, disseram que os animais não se comportaram normalmente no show que havia sido realizado algumas horas antes. Brad Sultan, da cidade de Tampa, também na Flórida, disse que uma das orcas não completou uma formação em triângulo com os treinadores e que, depois, uma delas não completou uma volta no tanque conforme o previsto.
Outras testemunhas ouvidas pelo jornal que estavam em um restaurante perto dos tanques das orcas afirmaram que a treinadora foi arrastada para a água por uma orca, enquanto a acariciava. Minutos depois, um alarme soou e seguranças isolaram a área.
Conforme o porta-voz da polícia Jim Solomons, a treinadora estava morta quando o resgate chegou.
Parque
Mais cedo, os responsáveis pelo parque disseram acreditar que a treinadora tivesse escorregado e caído dentro do tanque, sendo “fatalmente ferida” por uma das orcas.
Dan Brown, presidente da SeaWorld Orlando, afirmou aos meios de comunicação americanos que a vítima era “uma das mais experientes treinadoras de animais” e que ela “se afogou em um incidente com uma de nossas orcas”. “Este é um momento extremamente difícil para os parques Seaworld”, afirmou.
Em nota aos meios brasileiros, a SeaWorld Parks & Entertainment reafirma que o momento é “extremamente difícil” e diz que, em 46 anos de história, nunca teve “um incidente como este”. Conforme a empresa, todos seus procedimentos “passarão por severas investigações”.
O parque SeaWorld pertence ao grupo Blackstone, dono também de parte de outro parque da cidade, o Universal.