Ontem à noite, apesar de não conhecer (ainda) Padang, na ilha de Sumatra, na Indonésia, base de surfistas que exploram ilhas paradisíacas do pacífico, ao saber do terremoto, tive uma sensação parecida com o dia 12 de outubro de 2002. Naquele dia, explodiram o Sari Club, em Bali, lugar que eu frequentava bastante quando fiquei por lá 60 dias em 2000 (fotos da viagem no Flickr). Fiquei chocado com a notícia. Tanto que sentei na hora e escrevi as linhas abaixo no computador. O original está publicado no Waves (na época não havia blog).
Terremoto é algo chocante demais. Impressionante como varre a história de um local em poucos segundos. Mais impressionante ainda é como as localidades, as pessoas, todo mundo, se recupera e segue tocando a vida em frente. Afinal, não há outro jeito.
Segue o texto que escrevi em 2002 (aqui, no original):
Boate atingida era reduto de brasileiros na noite balinesa
Por Rodrigo Vieira da Cunha em 15/10/02 14:10 GMT-03:00
Jungle Juice. Confesso que até hoje não entendi direito porque o drink tinha aquele nome. Era uma coisa rosada-alaranjada com um leve gosto de fruta e um pesado cheiro de vodca. Talvez tenha sido batizado assim em homenagem a alguma fruta da Indonésia. Para brasileiros não havia grande novidade, afinal, “jungle” é o que não falta no Brasil.
Mesmo assim, era a bebida preferida da turma do Balão, formada por um paulistano de descendência japonesa que comandava a diversão da turma dos imigrantes-brasileiros-que-trabalhavam-no-Japão-para-ficar-seis-meses-em-Bali. Márcio, Nando e até Bingin, um francês de pele negra, alto, de cabeça raspada, segurança de casa noturna em Paris que não falava duas palavras em inglês, estavam sempre acompanhados por um Jungle Juice no Sari Club.
Até havia outras casas noturnas em Bali, como o Double Six e o Bounty, mas o Sari era o ponto de partida e também de chegada. Brasileiro tinha má fama. Talvez por causa dos primeiros surfistas que chegaram por lá, provavelmente na mesma época em que o jiu-jitsu já havia se popularizado na beira da praia no Rio, São Paulo e no sul.
Em Bali tudo é motivo para festa, principalmente no Sari Club. Foto: Darci.
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A fama era de que provocávamos briga e confusão. Os seguranças (ou o nome que se possa dar aos minúsculos leões-de-chácara balineses) ganhavam os brasileiros pelos pés. Os balineses desenvolveram um método próprio de identificar quem era quem antes da abordagem, para conversar ou para vender. Nossa origem era denunciada pelas sandálias havaianas.
Nosso calçado oficial em Bali fosse para pegar onda, fosse para jantar, fosse para dançar, era passaporte para os bli (o mesmo que balinês) dizerem algo do gênero: “Fala, memo!”, para dizer “Fala, meu irmão”, ou “Gatina gostosa”, para dizer “Gatinha gostosa”. Estas e outras frases – que repetiam feito papagaios – sempre vinham antes da oferta de alguma mercadoria (artesanato da loja do pai) ou serviço (onde comprar maconha, por exemplo). Palavras básicas de qualquer língua serviam para começar um bate-papo.
No Sari não tinha muita intimidade ou brincadeira. Os seguranças queriam mesmo era achacar dinheiro de brasileiro. Era uma espécie de taxa por “antecedentes criminais”. Nossa técnica de contra-ataque era fácil. Entrávamos no Sari com a cabeça erguida (acredite, eles eram menores que a gente!) e sem olhar para o lado. Funcionava em 90% dos casos. Quando não, vinham pedir 5 mil ou 10 mil rúpias (entre 50 centavos e um dólar) para entrarmos.
A onda de Padang é a mais procurada por quem está em Bali. Foto: Darcy.
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Obviamente, não pagávamos. Desconversávamos (um: “hello, my friend” ajudava). Algumas vezes, nos vendiam uma Bintang (a Brahma local) por baixo dos panos.
No lugar do preço habitual de 10 000 rúpias, cobravam 5 000 rúpias. A cerveja vinha quente. A compra “ilegal” não era para economizar esta mixaria. Era para jogar o jogo dos seguranças. Se você comprasse a mercadoria dele hoje, amanhã você deixava de ser incomodado.
E como incomodavam. Ninguém podia ficar parado na beira da pista com as mãos vazias. Um deles sempre estava lá para exigir que você comprasse alguma bebida (uma espécie de consumação profissional balinesa). A turma do Balão comprava Jungle Juice. Eu comprava cerveja. E Gugo comprava água. Apesar disso, o Alemão era sempre o mais agitado da turma.
Dançava reggae, rock dos anos 80 e trance, claro, como se tivesse bebido um engradado de Jungle Juice. Era sempre o primeiro a chegar no Sari. Enquanto a turma checava e-mail em um das dezenas de cybercafés de Kuta, Gugo preferia observar o movimento antes da pista abrir. Só meu irmão Bruno conseguia concorrer na categoria balançar o esqueleto, em algumas noites inspiradas.
Pôr-do-sol mágico em Padang. A ilha de Bali nunca mais será a mesmaFoto: Adriana Jordão.
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Às 22 horas era um bom horário de chegar. A pista ainda estava devagar e podíamos tomar alguma coisa sem acotovelamentos. À meia-noite já ficava um pouco difícil de circular. A pista do Sari não era grande – cerca de 15 metros de diâmetro.
Ao redor dela, havia algumas mesas e um bar com bancos altos. À esquerda da pista de quem entrava na danceteria estava o outro bar. Este era mais estratégico. Ficava perto da pista e da entrada, onde havia cerca de cinco mesas que davam para a rua.
Nunca sentamos em uma destas, onde geralmente ficavam turistas mais perto dos 40 anos do que dos 30. Eles faziam uma turma homogênea, de pele bronzeada. Muito ao contrário dos freqüentadores da pista e das mesas mais ao fundo. A fauna era totalmente variada. Havia surfistas brasileiros (nós!), americanos, australianos e peruanos. Nos dias de mar pequeno, esta população crescia. Uma variação que não acontecia com a turma da balada. Eles estavam sempre lá, em peso.
Infográfico do local do atentado em Bali. Foto: Portal Terra.
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Afinal, a cor denunciava, estavam em Bali pela vida noturna. Eu ficava impressionado com a quantidade de gente branca, totalmente branca, na pista. Gente que fazia festa até o dia amanhecer (mas não no Sari, que fechava às 2 horas) e não pisava nas areias de Bali.
Era interessante o contraste: de um lado a turma da praia, homens e mulheres com o mínimo de roupa emoldurando peles bronzeadas, e de outro os baladeiros, em geral de camisa larga para disfarçar a barriga. Em comum, a dança.
Raramente ficávamos depois da meia-noite. Quando isso acontecia, bebíamos todas e só voltávamos para o Warung Indra, nossa pousada-QG, quando tínhamos certeza de que não havia nenhum outro lugar aberto para tomar a saideira. Geralmente o Bounty, lugar do segundo escalão da Legian, rua onde ficava o Sari Club, estava. Era o preferido dos espanhóis: Axel, Paulo, Ganu e Jesus.
Fachada do Sari Club depois do atentado terrorista: tristeza. Foto: AP/Terra.
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Quando o Sari fechava, quem ainda queria dançar ou paquerar ia para o Bounty. O diferencial é que ali havia uma mistura de estrangeiros com nativos. Os espanhóis gostavam disto.
No Sari, balinês não entrava, com exceção dos garçons. Sem dúvida, por essa razão, ontem, dia 12 de outubro, a casa tenha entrado de vez para a história folclórica de Bali, a “ilha dos Deuses”, paraíso dos turistas e surfistas.
Um atentado terrorista explodiu o Sari Club. No levantamento mais recente, havia 188 mortos e 281 feridos, levando em conta as vítimas de outra explosão, em um restaurante perto de Denpasar. Muita gente com Jungle Juice na mão.